Casos graves de leishmaniose, que desfiguram a face dos doentes e podem levar à morte, são causados pelo parasita Leishmania infectado por um vírus, o Leishmania RNA vírus (LRV). Esse fato já era conhecido da ciência, mas agora pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP descobriram a forma como o vírus age no organismo humano para agravar a doença.
A leishmaniose é endêmica na América Latina e, segundo a ONG Médicos Sem Fronteiras, trata-se da segunda doença transmitida por parasita que mais mata no mundo. No Brasil, o Ministério da Saúde registra cerca de 21 mil novos casos todos os anos, a maioria na região Norte, seguida das regiões Centro-Oeste e Nordeste.
Um grande número de doentes apresenta lesões na pele. Há, no entanto, casos mais graves, em que as lesões se espalham pelo corpo: é a chamada leishmaniose mucocutânea, forma mais grave da doença, que surge nas mucosas, frequentemente nariz, boca e garganta. Essas lesões podem se tornar desfigurantes e são bastante graves.
Quando atingem o nariz, as lesões podem causar entupimentos, sangramentos, coriza, aparecimento de crostas e feridas. Quando atingem a garganta, os sintomas são dor ao engolir, rouquidão, tosse.
Em alguns casos, os doentes com leishmaniose cutânea se recuperam. Em muitos outros, a doença progride para a fase mucocutânea e os pacientes chegam até mesmo a morrer.
O pesquisador Renan Carvalho desenvolveu sua pesquisa de doutorado na FMRP com o objetivo de entender o que provoca esses casos mais graves de leishmaniose. Junto ao seu orientador, o professor Dario Zamboni, Carvalho identificou os alvos celulares do sistema imunológico humano atacados pelo vírus LRV.
Ao confirmar que os casos mais graves, decorrentes da leishmaniose mucocutânea, são provocados pelo parasita infectado pelo vírus LRV, os pesquisadores também conseguiram compreender como o vírus atua ao aumentar a gravidade das lesões mucocutâneas. Para isso, eles estudaram, em laboratório, material coletado de pacientes doentes e analisaram a doença em ratos.
Os cientistas verificaram que o vírus, introduzido no organismo pelo parasita da Leishmania, ativa um receptor nas células humanas chamado TLR3. Após essa ativação, o sistema imunológico começa a produzir interferon tipo 1. O interferon, por sua vez, induz a autofagia das células humanas. Autofagia é o processo de degradação e reciclagem de componentes da célula.
O professor Dario Zamboni conta que, quando o sistema imune começa a produzir interferon do tipo 1, as células humanas ficam muito mais vulneráveis. Isto acontece porque a presença do interferon impede a ação do inflamassoma, que é um conjunto de proteínas do sistema imune que ajuda a combater a infecção. Arma importante para matar o protozoário Leishmania, “o inflamassoma ajuda nossas células a se defender do parasita”.
É como se o vírus LRV “driblasse nosso sistema imune”, comenta Renan Carvalho. Agora, “entendemos como o vírus age para manipular as defesas do nosso organismo e favorecer o crescimento do parasita”. Sem o vírus, diz o pesquisador, “desenvolvemos uma resposta imune que, muitas vezes, é capaz de eliminar o parasita, mas na presença do vírus ele consegue driblar nosso sistema imunológico” e provocar os problemas faciais da leishmaniose tegumentar mucocutânea.
Caminho aberto para novos tratamentos
De acordo com Carvalho, essa descoberta é importante porque abre novas perspectivas para o desenvolvimento de terapias para a doença. “Se conseguirmos direcionar tratamentos que atuem nesses alvos manipulados pelo vírus, poderemos melhorar o combate ao parasita promovido pelo nosso sistema imune e impedir o agravamento da doença”, diz.
E são esses os próximos passos da pesquisa, garante o pesquisador. Como já comprovaram os achados tanto in vitro (culturas de células humanas) quanto in vivo (animais de laboratório), agora eles devem validar os achados em humanos. Segundo Carvalho, o mais importante é que as descobertas já podem orientar os médicos para novas abordagens terapêuticas para a leishmaniose.
O pesquisador diz que se um paciente estiver com diagnóstico confirmado da doença, deve-se verificar também, através de técnicas de biologia molecular, a presença ou não do vírus. Se o parasita tiver o vírus, “talvez o manejo clínico desse paciente tenha que ser diferenciado”, alerta Carvalho.
Os resultados desse estudo acabam de ser publicados na Nature Communications, pelos pesquisadores Carvalho e Zamboni e equipe nos laboratórios da FMRP, no âmbito do Centro de Pesquisas em Doenças Inflamatórias (CRID), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Referência: Jornal da USP – Por: Rita Stella e Ferraz Jr. – Foto: Wikimedia Commons CC