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Departamento de genética comemora 60 anos de ensino e pesquisa — Foto: Documentação Científica FMRP-USP

De laboratório pioneiro a departamento de referência na genética brasileira

Departamento de Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto celebra seis décadas de pesquisa, ensino e compromisso social

“Sessenta anos não se medem apenas em tempo, mas em contribuição acadêmica, produção científica, formação de professores e compromisso com a sociedade.” Com essas palavras, o professor Wilson Araújo da Silva Jr., chefe do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, abriu a celebração que marcou duas datas simbólicas: os 60 anos de fundação do departamento e os 50 anos do Serviço de Genética Médica do Hospital das Clínicas da FMRP.

Mais do que uma cerimônia comemorativa, os encontros realizados nos dias 26 e 27 de julho lançaram luz sobre a trajetória de um departamento que nasceu com vocação para o pioneirismo. Fundado em 1965, foi o primeiro do gênero criado em uma universidade pública brasileira, já com ênfase na interdisciplinaridade e no vínculo entre pesquisa, ensino e extensão. Desde então, consolidou-se como referência em genética de populações humanas, genética médica, citogenética, genética de microrganismos, ecologia e comportamento de abelhas, entre outras áreas que se tornaram marca registrada da produção científica em Ribeirão Preto.

Ao longo das décadas, o departamento contribuiu para a formação de pesquisadores, médicos e professores que hoje atuam em universidades e centros de pesquisa em todo o País e no exterior. Participou de grandes programas colaborativos, como o Projeto Genoma, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), estruturou um dos primeiros laboratórios de biologia molecular do interior paulista e liderou a consolidação da genética médica como especialidade clínica no Brasil.

Foi nesse contexto de excelência e renovação institucional que se deu a programação comemorativa, marcada por mesas-redondas, palestras científicas e homenagens, reunindo gerações distintas em torno de um mesmo propósito: celebrar a ciência e quem a faz. O evento também contou com o concerto musical da soprano Chiara Santoro e do professor e maestro  Rubens Russomanno Ricciardi, seguido da homenagem ao professor Moacyr Antonio Mestriner.

Programação científica e institucional 

As celebrações pelos 60 anos do Departamento de Genética e 50 anos do Serviço de Genética Médica começaram na quinta-feira, 26 de julho, com uma programação dedicada à ciência. O evento foi aberto pelos professores Wilson Araújo da Silva Jr. e Ester Silveira Ramos, que receberam pesquisadores e estudantes para uma série de palestras e debates.

Wilson Araújo da Silva Jr., chefe do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP durante discurso de abertura — Foto: Documentação Científica FMRP-USP

A manhã contou com apresentações sobre estresse oxidativo e câncer de pele, biotecnologia baseada em enzimas da biodiversidade brasileira e uma mesa-redonda sobre os rumos da pós-graduação no Brasil, com a participação do pró-reitor de Pós-Graduação da USP, Rodrigo Calado. À tarde, o foco esteve nos avanços da genética médica e da inteligência artificial em saúde e o encerramento científico veio com uma mesa-redonda sobre ciência e tecnologia no Brasil e em São Paulo, com a participação do diretor científico da Fapesp, Márcio de Castro Silva Filho.

A sexta-feira, 27 de julho, foi dedicada às celebrações institucionais e a uma série de falas que revisitaram o passado e projetaram o futuro da genética em Ribeirão Preto. Após a abertura feita pelos professores Wilson Silva Jr. e Ester Ramos, Wilson relembrou os marcos históricos do departamento e a expansão da atuação docente. “Contratamos quatro novos professores com atuação em bioinformática, ciência das ômicas e genética de populações humanas, áreas fundamentais para os desafios contemporâneos. Em breve, teremos uma nova casa, com a mudança para o Centro de Pesquisa em Ciências Biomédicas (CPCbio), o que reforçará ainda mais nosso papel na formação acadêmica e na pesquisa científica. São 60 anos de ensino, pesquisa e extensão, com contribuições relevantes que extrapolam os limites da Universidade. Nosso compromisso é entregar um departamento ainda mais participativo, mais inclusivo e mais relevante institucionalmente.”

Já a chefe do Serviço de Genética Médica, Ester Ramos, emocionou-se ao relembrar a trajetória pessoal e institucional. “Eu sou cria da casa. Vim para Ribeirão por causa do Departamento de Genética. O nosso serviço começou debaixo de uma escada, e hoje está no sétimo andar do Hospital das Clínicas. Temos nos nossos arquivos mais de 14 mil famílias atendidas. Somos pioneiros na formação médica e na estruturação de uma genética clínica no Brasil. E seguimos evoluindo, agora com a inclusão da Genética no internato médico da FMRP, onde todos os alunos terão passagem obrigatória pelo nosso serviço. Isso é formação com base na prática, é formação com humanidade”, enfatizou.

O diretor da FMRP, Jorge Elias Jr., que também representou o reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Junior, reforçou o papel integrador do departamento no campus: “Hoje é um dia de festa, mas também de reflexão. O diferencial do nosso departamento vai muito além da produção científica: é a colaboração intensa entre unidades, o trabalho conjunto. A genética aqui é uma luz que ilumina o campus como um todo. Temos uma história de cooperação e de formação de excelência que precisa ser celebrada e projetada para o futuro. O prédio novo, que está sendo construído, vai reunir cinco departamentos básicos, e isso só foi possível porque temos essa tradição de diálogo e planejamento conjunto”.

Presente nas comemorações, Marco Antonio Zago, presidente da Fapesp e Professor Emérito da FMRP, resgatou o contexto histórico da criação do departamento: “A genética extrapolou o próprio departamento. Ela hoje está em toda a vida da Faculdade de Medicina. Mas é preciso perguntar: este departamento mantém o frescor da novidade? Continua sendo uma fonte de inspiração para os jovens que aqui chegam? O conhecimento precisa ser uma busca incessante. Que o departamento não se transforme numa repartição, mas siga sendo um tesouro do conhecimento. Essa é a sua missão”.

Márcio de Castro Silva Filho, diretor científico da Fapesp, valorizou a representatividade de Ribeirão Preto para a genética nacional: “A genética brasileira se confunde com Ribeirão Preto. Aqui está a sede da Sociedade Brasileira de Genética, a revista científica da área e um núcleo de excelência reconhecido nacionalmente. Voltar a Ribeirão, como geneticista e como dirigente da Fapesp, é celebrar a ciência de forma completa, com rigor, mas também com afeto. Parabenizo todos que construíram essa história e desejo que ela siga inspirando gerações”.

(Da esq. p/dir.) Wilson Araújo da Silva Junior, Marco Antonio Zago, Jorge Elias Junior, Marcio de Castro Silva Filho e Ester Silveira Ramos — Foto: Documentação Científica FMRP-USP

Uma vida dedicada à genética

As comemorações também incluíram homenagem ao professor Moacyr Antonio Mestriner, por sua contribuição essencial à formação e consolidação do Departamento e do Serviço de Genética Médica. Médico de formação, pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, e doutor em Ciências Biológicas pela USP, Mestriner é reconhecido por ter descrito os primeiros polimorfismos protéicos em Apis mellifera, trabalho que mereceu publicação na revista Nature em 1969, marco pioneiro no estudo da genética animal no Brasil.

Em 1977, como parte da consolidação do Serviço de Genética Médica, esteve à frente da criação do primeiro programa de residência médica em Genética Clínica no País, realizado no HCFMRP, o que reforçou o papel da instituição na formação de médicos geneticistas. Teve centenas de trabalhos publicados e apresentados em congressos e encontros científicos e orientou dezenas de estudantes, tanto de graduação como de pós-graduação e de pós-doutorado.

Além da pesquisa, Mestriner teve papel institucional relevante em Ribeirão Preto. Foi presidente da Comissão de Pós-Graduação da FMRP e pró-reitor de Pós-Graduação da USP. Como prefeito do campus da USP, em 1997, coordenou um projeto de reflorestamento de 30 hectares e a criação de um Banco de Germoplasma de 45 hectares, preservando 44 espécies da Mata Estacional Semidecidual.

Moacyr Antonio Mestriner (à esq.) durante homenagem recebida na cerimônia — Documentação Científica FMRP-USP

Foi um dos articuladores para a instalação do Departamento de Música no campus. Em sua fala, Aguinaldo Luiz Simões, professor do departamento, evocou, com humor e admiração, a genialidade de Mestriner em campo e laboratório. “Essa homenagem é justa e necessária. O professor Mestriner teve papel central na criação do nosso Laboratório de Genética Bioquímica. Em 1968, ele adaptou uma técnica de eletroforese em gel de amido com o que havia à disposição, bandejas de plástico, mingau de batata, papel de filtro e até fios de cabelo. Criatividade e rigor. Depois, destacou-se na administração, coordenando a pós‑graduação e exercendo funções como prefeito do campus. Um homem que soube ser cientista, gestor e colega com o mesmo brilho.”

Uma trajetória de ciência e formação

Em março de 1965, teve início na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto uma história científica que se tornaria referência nacional. O recém-criado Departamento de Genética nasceu a partir do convite feito ao professor Warwick Estevam Kerr para organizar a disciplina de Genética e estruturar uma nova unidade acadêmica voltada à pesquisa, ao ensino e à formação de profissionais em uma área então emergente nas ciências biomédicas brasileiras.

A proposta era ambiciosa: formar um núcleo moderno de genética capaz de integrar diferentes áreas, da microbiologia à genética humana, da ecologia à biologia molecular. Kerr aceitou o desafio e, com um grupo inicial composto de docentes como Maria Aparecida Savino, Hérica Macedo e Moacyr Mestriner, deu início às atividades ainda em 1965. Três meses depois, o Conselho Técnico Administrativo da FMRP aprovava oficialmente a criação do departamento, consolidando sua fundação formal.

Desde o início, a atuação foi marcada pelo espírito interdisciplinar. As primeiras atividades envolveram ensino e pesquisa em genética de microrganismos, genética médica, citogenética e genética de populações, com articulação com outras unidades da USP, como a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) e também com instituições nacionais e internacionais.

Ao longo das décadas seguintes, o departamento ampliou suas frentes de pesquisa e consolidou grupos de excelência em diversas áreas. Na genética médica, destacou-se o desenvolvimento de técnicas para o estudo de doenças hereditárias e o aconselhamento genético, em articulação com o Hospital das Clínicas da FMRP. Ainda que o termo “medicina de precisão” não estivesse em uso na época, as pesquisas já antecipavam os princípios dessa abordagem, ao investigar as bases moleculares das doenças e buscar relações entre alterações genéticas e manifestações clínicas, integrando diagnóstico, pesquisa e formação de profissionais de maneira interdisciplinar.

Na genética de microrganismos, foram realizados estudos sobre mutagênese, reparo do DNA e mecanismos moleculares de herança bacteriana. Já na área de genética animal e vegetal, merecem destaque as pesquisas com isoenzimas, marcadores genéticos e populações naturais, com ênfase em estudos com abelhas, que alcançaram reconhecimento internacional nas décadas de 1970 e 1980.

O crescimento da produção científica caminhou junto com a qualificação do corpo docente. Muitos professores obtiveram títulos de doutorado e realizaram estágios de pós-doutoramento em instituições renomadas na Europa e nos Estados Unidos. Esse intercâmbio fomentou a formação de redes internacionais e contribuiu para consolidar a excelência acadêmica do departamento.

A pós-graduação em Genética da FMRP também ganhou projeção. O programa passou a atrair alunos de diferentes regiões do País e de diversas formações, como biologia, medicina, farmácia e biotecnologia. Com disciplinas inovadoras, projetos interdisciplinares e forte base experimental, o curso consolidou-se como um dos mais respeitados na área.

No campo da extensão, o departamento esteve à frente de iniciativas de impacto social, como o aconselhamento genético e a contribuição para o atendimento clínico de pacientes com doenças hereditárias. Essa interface entre bancada e hospital se intensificou com a criação do Serviço de Genética Médica do HCFMRP, que nasceu de uma articulação direta com o trabalho acadêmico desenvolvido pelo departamento.

A estrutura física também acompanhou essa evolução. Após anos em instalações provisórias, o departamento passou a ocupar, a partir de 1981, um prédio próprio com laboratórios modernos, salas de aula, biotério e setores técnicos. Essa infraestrutura permitiu a ampliação das linhas de pesquisa e a participação ativa em projetos institucionais de grande porte, muitos deles multicêntricos e financiados por agências como Fapesp, CNPq e Capes.

Com o tempo, o Departamento de Genética passou a desempenhar um papel importante também na estrutura acadêmica da FMRP, contribuindo para a criação de cursos, a elaboração de currículos e a consolidação da pesquisa como eixo fundamental da universidade pública.


Texto por: Rose Talamone – Jornal da USP, com colaboração de Eduardo Nazaré – Dr. Fisiologia, Assessoria de Comunicação da FMRP-USP