Pesquisas apresentadas na conferência ressaltam a importância da Medicina Centrada na Pessoa e seu impacto no atendimento a populações marginalizadas
A vigésima nona edição da Conferência da Organização Mundial dos Médicos de Família (WONCA), realizada entre 25 e 28 de setembro de 2024 em Dublin, Irlanda, contou com a apresentação de pesquisas desenvolvidas na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. O evento reuniu especialistas em Medicina de Família e Comunidade de todo o mundo e destacou os desafios e as inovações no atendimento à saúde pública, com um foco especial em populações vulneráveis e no fortalecimento da Atenção Primária à Saúde.
Durante o encontro, a doutoranda Cely Carolyne Pontes Morcerf apresentou estudos que investigam o impacto do Método Clínico Centrado na Pessoa na resolutividade clínica e no tratamento de doenças crônicas, especialmente em contextos de vulnerabilidade social vivenciados no Brasil. Com orientação do professor João Mazzoncini de Azevedo Marques do Departamento de Medicina Social, as pesquisas focam em questões pertinentes sobre a formação de médicos de família no Brasil e os desafios de implementar um modelo de saúde pública mais inclusivo e eficiente.
A Medicina de Família no Brasil e seus desafios
A Medicina de Família e Comunidade no Brasil tem passado por uma evolução constante desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com Mazzoncini. O SUS, diz o professor, foi estruturado a partir de modelos internacionais de sistemas universais de saúde, como os do Reino Unido, Canadá e Austrália. Embora ainda enfrente dificuldades, o sistema brasileiro já apresenta avanços significativos, principalmente no que diz respeito à qualidade e à eficiência do atendimento na Atenção Primária à Saúde.
“O Brasil se destaca em termos de indicadores de saúde entre países de renda média. Isso se deve, em grande parte, à estruturação da Atenção Primária, que é capaz de resolver cerca de 90% das demandas de saúde da população”, afirma o professor.
Entretanto, um dos principais desafios enfrentados no Brasil, segundo Mazzoncini, é o desconhecimento da população e de alguns gestores sobre a importância da especialidade. “Muitas vezes, a Medicina de Família e Comunidade é confundida com a prática generalista, o que não condiz com a formação especializada que oferecemos”, explica. O professor também aponta a necessidade de formar mais médicos especialistas na área, algo que ainda é insuficiente para atender a demanda do País.
Método Clínico Centrado na Pessoa
Os trabalhos apresentados na conferência focaram no impacto do Método Clínico Centrado na Pessoa, uma abordagem que valoriza a participação ativa do paciente na construção de seu plano de tratamento. Para Cely, essa metodologia é especialmente eficaz no tratamento de pacientes com multimorbidades – pessoas que convivem com duas ou mais doenças crônicas.
“A grande diferença dessa metodologia é que ela transforma o paciente em protagonista do cuidado, e não em um receptor passivo de orientações. Isso é particularmente importante quando lidamos com doenças crônicas, que exigem uma adesão terapêutica constante”, afirma Morcerf. Segundo ela, essa abordagem tem se mostrado eficaz na promoção de um cuidado mais humanizado e na criação de vínculos mais fortes entre médicos e pacientes, o que melhora a adesão ao tratamento e a qualidade de vida dos pacientes.
O estudo detalha, ainda, o uso do método SIFE (Sentimentos, Ideias, Funcionalidade e Expectativas), que ajuda os médicos a entender melhor as percepções e as necessidades dos pacientes em relação ao seu estado de saúde. “Esse método nos permite ter uma visão mais completa do paciente, integrando aspectos físicos, emocionais e sociais no tratamento”, explica Morcerf.
Populações marginalizadas
Nesse contexto, um dos focos das pesquisas da FMRP foi o atendimento a populações marginalizadas, como idosos e pessoas em situação de pobreza. De acordo com Cely, essas populações enfrentam não apenas barreiras de acesso à saúde, mas também um histórico de exclusão social, o que agrava seu estado de saúde mental e físico.
“A marginalização social faz com que essas pessoas se sintam inferiorizadas, o que impacta diretamente sua saúde. Ao trabalhar com essas populações, a Medicina de Família e Comunidade melhora o acesso aos serviços de saúde e também atua no empoderamento desses indivíduos, promovendo uma maior adesão ao tratamento e uma melhoria no autocuidado”, afirma.
Para ilustrar essa abordagem, Cely destacou o uso do Genograma Familiar e do Ecomapa, ferramentas que ajudam os médicos a entender os padrões de adoecimento nas famílias e a mapear as redes de suporte social dos pacientes. “Essas ferramentas nos permitem identificar fatores sociais e familiares que podem influenciar o estado de saúde dos pacientes, possibilitando uma abordagem mais completa e eficaz”, explica a doutoranda.
Desafios no Brasil
Embora as inovações apresentadas na WONCA Europe Conference sejam promissoras, sua implementação no Brasil ainda enfrenta desafios. Segundo Cely, a formação de médicos de família ainda é insuficiente para atender à demanda do País, e muitos profissionais acabam migrando para o setor privado, onde a especialidade tem sido cada vez mais valorizada.
“Na Europa, a Medicina de Família é a base dos sistemas de saúde, e os resultados são visíveis: menos internações desnecessárias, menos pedidos de exames e maior resolutividade no atendimento. No Brasil, precisamos fortalecer a Atenção Primária para alcançar esses resultados”, afirma Cely.
Mazzoncini afirma que a solução passa pela formação de gestores capacitados, que entendam a importância da Medicina da Família e Comunidade e da Atenção Primária à Saúde para a organização do sistema de saúde. “Estamos organizando novos programas de residência com subespecialização em áreas como Saúde Mental e Gestão, que vão formar médicos de família ainda mais preparados para lidar com os desafios do nosso sistema de saúde”, explica o professor.
Os pesquisadores acreditam que o futuro da Medicina de Família no Brasil depende do fortalecimento da Atenção Primária e da formação contínua de médicos especializados. Segundo os pesquisadores, o empoderamento de populações marginalizadas será uma das principais frentes de trabalho nos próximos anos, com o objetivo de reduzir as desigualdades em saúde e melhorar a adesão terapêutica.
“A Medicina de Família e Comunidade tem o potencial de transformar o atendimento em saúde no Brasil, especialmente em contextos de vulnerabilidade social. Precisamos continuar investindo em pesquisa e formação para garantir que essa especialidade tenha o reconhecimento e o impacto que merece”, conclui Cely.
A pós-graduação e residência em Medicina Social na FMRP
O Departamento de Medicina Social da FMRP tem sido pioneiro na formação de médicos de família no Brasil. Criado em 1999, o programa de residência médica em Medicina de Família e Comunidade tem formado especialistas preparados para lidar com as mais diversas demandas de saúde da população, sempre com um foco na atenção integral e personalizada.
Além disso, o programa de pós-graduação em Saúde Pública, anteriormente chamado de Medicina Preventiva, tem se destacado pela formação de profissionais capacitados para atuar tanto na assistência quanto na gestão de serviços de saúde. Com uma abordagem multiprofissional, o programa prepara seus alunos para enfrentar os desafios da saúde pública no Brasil e no mundo, sempre com um olhar voltado para as necessidades das comunidades.
“A FMRP tem sido uma referência na formação de médicos de família, não apenas no Brasil, mas internacionalmente. Nossa missão é formar profissionais que possam contribuir para a melhoria da saúde pública e para a construção de um sistema de saúde mais justo e eficiente”, finaliza Mazzoncini.